quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

REVENDO O FILME


De boleia muito gostava
Veja-se a sua felicidade
O grupo nunca largava
Pela sua cumplicidade

Em amena cavaqueira
Para o tempo passar
Sentados numa cadeira
Esperando pelo jantar


Para a carta de condução
Era necessário conduzir
No momento da instrução
Não se podia distrair

Já em Lisboa no seu espaço
Apreciando o rio e a paisagem
No seu condomínio terraço
Como a prestar vassalagem

Para o salto exercitar
Até servia a galinha
Não me podia descuidar
Porque nunca mais seria minha

Posto da pedra do deitiço
Em pleno Rio Zaire
Onde pairava o enguiço
Mais tarde veio o desaire


Ao treino não se furtava
Era mesmo grande artista
Qualquer coisa ele treinava
Até mesmo ser ciclista

Jogava a qualquer lugar
Não se fazia rogado
Quem o quisesse julgar
Tinha que ser moderado

Desportista aplicado
Sempre atento à jogada
Se não era respeitado
Usava logo a dentada

Sempre contribuiu
Com a sua capacidade
Às dificuldades não fugiu
Por isso a minha amizade


As fotos inseridas na postagem (marcas da guerra), foram todas tiradas em Cabinda na lagoa do Massabi quando decorria o ano de 1967, com o meu amigo Dembos, a mostrar que também sabe saltar, estar, partilhar e até perfilar junto a uma das marcas por nós deixada, que muito provavelmente já terá sido arrancada. Foi erguida na minha primeira comissão e pelo meu Destacamento. Se bem me lembro, dizia assim de forma sentida, ainda que ilusória: Homenagem dos que partem, aos que ficam, na defesa das fronteiras de um Portugal eterno. Este posto tem algumas histórias, tal como outros pontos onde estive, que me marcaram de forma indelével. Vou fazer duas abordagens por Bombordo, que, para quem não saiba, é o lado do coração, quando aproamos o nosso olhar. (avante) Nenhuma delas foi referenciada no nosso (vosso) livro Fuzileiros Força de Elite.

As duas, tem também como um dos artistas principais, o meu grande e muito racional canito. Aconteceu nesta terceira vez que fiz parte da guarnição deste posto, ser cabo de rancho. Era uma situação confortável e que me dava uma certa disponibilidade para ir fazer a minha psicó nocturna, numa sanzala (um povo indígena) bem longe das nossas instalações onde, tentava dormir (bem acordado) de vez em quando, com uma jovem nativa a cujo pai tinha comprado o cabaço, (virgindade) tudo numa boa, sem intimidar ou forçar, apenas, seduzindo-a sem as falsas promessas de a trazer para Lisboa! Aluguei um apartamento, (cubata) comprei lençóis, um mosquiteiro, e um candeeiro que gastava do petróleo que eu ia levando para o soba distribuir pelos seus patrícios. Por lá fui fazendo umas sentinelas, em tempo variável, sempre em função das horas em que era feita a patrulha, que alternadamente cobriam periodos diferentes do dia e da noite. A boleia era sempre garantida, porque estava concertado entre mim e o pessoal da patrulha, a abordagem diária, com a informação da hora estabelecida para partida da patrulha da noite. O inseparável Dembos, fazia continuamente comigo, parte da guarnição de um dos dois botes daquelas missões. (nocturnas) Depois de mais ou menos meia hora, desembarcávamos num cais improvisado existente naquele condomínio, (aberto) que se confrontava com toda aquela imensidão de água e que nas noites mais escuras, era uma autêntica aventura percorre-lo sem ir ao banho. Tinha sempre em conta as vantagens que era, desembarcar sem dar muito nas vistas “ouvidos” para que a minha presença fosse o mais ignorada possível, não viesse o diabo tece-las, porque ficar sozinho numa sanzala onde a hipótese de haver guerrilheiros era potencial e pouco incógnita, não era pêra doce e eu tinha isso sempre presente na minha estratégia, até mesmo se tivesse de abandonar o apartamento rapidamente, estava planeado Mas a irreverência da juventude, tem uma força avassaladora, ainda que às vezes, pouco credora. Mas neste caso, sempre que ia ter com a Maria dava conhecimento ao Comandante do posto, e do pelotão, hoje Doutor Paulo Marques bem conhecido na nossa praça, que me dizia com graça, que eu, estava a provocar o aparecimento de uma notícia (morreu o cabo Fuzileiro Especial Mário Henriques Manso em combate!) Retorquia-lhe que, uma guerra tem sempre activas, várias frentes e vertentes, algumas delas latentes, a que era necessário dar resposta, porque também na guerra coisas há, que se não se podem protelar, e que em último caso, se não houver alguém para colaborar, um homem tem que desenrascar a situação, o que acontecia na maioria das vezes.

Quando hoje faço o filme andar para traz, é que me apercebo do que a virilidade de um homem é capaz. Foi sempre um risco mal calculado é verdade, mas quando se anda bem acompanhado somos capazes de fazer coisas que hoje, nos fazem ter saudades de algumas peripécias vividas na juventude. O Dembos transmitia muita confiança, então, antes de sair do apartamento, o que acontecia de imediato com a chegada dos primeiros sons, tão característicos dos motores dos botes, naquele tormentoso silêncio da noite. Logo que abria a porta da cubata, o meu amigo imediatamente saía para analisar o exterior e quando de novo entrava abanando o rabo, era prenúncio de que não havia perigo e o caminho estava livre para o reembarque. Algumas poucas vezes, aconteceu, sair e começar a ladrar, obtendo como resposta ai ué!! senhor!! Senhor!! o Dembos, de facto não simpatizava nada com os indígenas, ao mesmo tempo que eles lhe dispensavam um enorme pavor, coisa que até dava jeito.
Assim aconteceu muitas vezes em outras situações. Foi sempre um fiel guarda-costas que mesmo não lhe pagando salário, daria a vida por mim satisfazendo-se apenas com umas festas de reconhecimento.
Se duvidas houvesse elas desvaneciam-se, com um outro seu comportamento.
Nesta mesma estada tive o paludismo e durante três dias, presenteou-me em total permanência com a sua sentinela, cujo posto de observação achou por bem ser debaixo da minha cama. Dai, controlava todos os camaradas que me iam abordando, questionando o meu estado de saúde mas, se a voz passava os decibéis que para indiciassem alguma afronta, ele rosnava de imediato, mesmo conhecendo bem todos os companheiros daquela aventura. Tive que me levantar com as dificuldades inerentes à febre alta que ainda tinha, para que ele comesse, bebesse e fizesse as suas necessidades, coisa que não fazia havia muito tempo. Foi uma lição de abnegada camaradagem, que marcou todos quantos assistiram a tão grande manifestação de alegria correndo de um lado para o outro, ganindo e saltando contra o meu peito como a querer abraçar-me.

O que a sua atitude transmitiu
Foi mais que uma imagem
Quando guardou não mentiu
No humano é camaradagem

Mais tarde, já em Luanda na base em Belas aproximava-se o fim de mais esta comissão, e de novo abraçava a responsabilidade de Cabo de Rancho. Então, sempre que pela manhã me aprontava para ir para a praça (Maria da Fonte) fazer as compras, “para matar a malvadas dos meus camaradas”, era frequente aparecer junto ao jipe fazendo-me entender que queria ir comigo, assim ia acontecendo mas algumas vezes se descuidou e não foi. Certo dia, não dava jeito que fosse comigo, porque havia muita coisa a comprar e ele sempre contribuía para me empastelar o tempo, conversando com pessoas que entretanto se ia conhecendo, a maioria das vezes por sua causa. Acontecia, que quando ficava na base, muita dessa gente, desde as vendedeiras aos clientes, me perguntavam por ele. Fui forçado a conhecer muitas pessoas, especialmente senhoras, e que senhoras! Então um dia, e sem grande necessidade, lá vai a dupla passar um bocado da manhã, especialmente, para dar dois dedos de conversa com pessoas, algumas delas muito interessantes.

Na zona das bancas de pequeno consumo, estando conversando com a senhora do caldo verde, apercebo-me que lateralmente noutra banca uma senhora já conhecida com a sua mulatinha ali fazia compras. O cesto estava no chão ao lado da empregada já com algumas aquisições, de imediato, pensei numa marosca e sinalizei o cesto ao Dembos e fiz-lhe entender que o fosse buscar. “coisa que fazia com gosto”. A ordem foi cumprida de imediato, com um grau de prontidão de fazer inveja a alguns militares. Coloquei-o do lado oposto às rapinadas protegendo-o da sua visão. Acto contínuo, a mocinha toda atrapalhada, volta-se e revolta-se, e de cesto não havia rasto, levando a senhora a aperceber-se da situação. Foi algum tempo que desfrutei com gozo, na esperança de não ter algum dissabor, mas como era uma das amigas do Dembos, só, presumo eu, dava-me alguma garantia que não ia haver peixeirada. Assim aconteceu, quando comecei a ficar com pena da mocinha, resolvi chegar-me a elas sendo certo, que o Dembos ficava junto ao cesto, e cumprimentei-as envolvendo-me logo nas preocupações, das espoliadas, que ainda não tinham visto o artista que provocou a cena, o que levou a patroa a perguntar por ele, estando de costa para o furto, respondi-lhe chamando pelo “ladrão”.
A senhora era ainda jovem mas muito menos que eu, tinha um sorriso que deliciava quem quer que fosse, mesmo que não se lhe fizesse, uma leitura erótica. Fixou o olhar em mim de tal forma, maliciosa, que eu, até fiquei sem jeito, e sem proveito, ao mesmo tempo que diz, meu malandro olhei para o lado e o rapinante ali estava ao meu lado de cesto suspenso na boca, dando gozo a todos quantos, entretanto se tinham apercebido.
Aquela brincadeira desfez barreiras que facilitaram muito uma aproximação entre pessoas, alguma delas, dariam frutos bem maduros e gostosos, não tenho dúvidas, porque em mais duas vezes que encontrei a dita bendita, estava só, o que não tinha antes acontecido, e não creio que a empregada tenha adoecido. Era uma situação impoluta, a que faltava tempo para dar luta
Tinha chegado a minha última ida á praça de Luanda, e por ironia do destino, fui surpreendido pela voz envolvente e sedutora da dita senhora, com um olá Mário!.. o Dembos foi certamente a razão daquela abordagem tão suave, porque fez-lhe de imediato uma festinha na cabeça, naquele momento, baixei-me também sugerindo ao Dembos que a cumprimentasse o que ele facilmente fazia, levantando a pata direita. Estes movimentos meio atabalhoados provocaram uma pequena colisão nas faces de bombordo, que nos deixou de tal forma afogueados, que mais parecia, que tínhamos estado abraçados.

Os meus avios, eram naquele dia poucos e estavam feitos, já havia tempo gastava o período que mediava a chegada do transporte, despedindo-me de todas as pessoas com quem por ali me fui relacionando, lá fomos descendo e conversando com o à-vontade de quem já se conhece, e desfruta há muito tempo, de alguma intimidade. Estávamos a cair numa emboscada, e se tínhamos armas para nos defender, não tínhamos tempo para o fazer. Estávamos os dois embaraçados, mas já não dava, nem para morrermos por uns minutos abraçados.
No rés do chão era onde se fazia o grosso das compras, foi mais uma vez o Dembos a vedeta. Ai fui abordado por um vendedor que ali tinha vários produtos, que me propôs comprar o cão quando eu terminasse a comissão, eu disse-lhe que estaria só mas dois e embarcava para Lisboa. Olhe dou-lhe quinze contos e fica já aqui, quer? Não! Ele vale mais, quer ver, e ali mesmo, exibiu algumas das suas capacidades, a troco de uma festa do seu dono, que estou certo, ele não trocava pelas da nossa amiga que ali se deliciava.
Aumentou para vinte contos, ao mesmo tempo me dizia que achou muita graça quando da outra vez, ele ficou a guardar a menina no exterior da praça. Também a Filomena, com a sua empregada, neste dia dispensada, assistiu à cena, que levou muito boa gente a ficar muito limitada nas compras, tendo também sido o seu caso. Então a cena é assim: Acontecia muitas vezes ter necessidade de comprar ovos, e como eram sempre muitos, passava pela senhora e encomendava, ela tinha uma filha com quatro anos, que simpatizava de tal maneira com o Fuzileiro, que queria ir sempre comigo, razão, porque o Dembos lhe tinha tanta afeição.
Acontece, que certo dia, não tinha tempo a perder, mas a miúda chorava porque não a levava, então lá lhe dei a mão até á entrada principal e ai sentei-a no chão e disse ao Dembos que a guardasse. (cuidado! guarda a menina!) era quanto chegava para que, quem indiciasse tocar-lhe, e fosse mais ousado, levava pela certa uma trincadela, era essa a minha garantia, já testada em situações semelhantes, mais ainda, tratando-se de uma criança de quem gostava, e se sentia protector. A cena estava armada e os espectadores não tardaram a aglomerar-se à sua volta, então contado por quem assistiu, que a menina levantou-se algumas vezes, mas logo era segura pela roupa, acabando por sentar-se de novo. Quando cheguei, as pessoas estavam maravilhadas com todo aquele espectáculo.
Muitas e enternecedoras histórias protagonizadas pelo Dembos, poderia contar, mas não quero chatear, como fazia, quando o obrigava a guardar, rastejar, saltar, parar, deitar, salvar na água, e outras que não vou relatar.

Fez a viagem de regresso
Na minha memória ele jaz
Tenho muitas saudades confesso
Nos Fuzos ninguém fica para traz


É muito pouco provável que alguns dos figurantes destas passagens, já tão distantes, venham a ler e reviver este palco de cenas hilariantes algumas até provocantes, porque tal como eu, andariam mais de quatro décadas para traz, e seria muito engraçado.
Também sem pestanejar, um abraço para todos, quantos tiveram a paciência de dispensar algum tempo, a ler, porque razão o dinheiro não compra tudo, e vinte contos eram naquele tempo muito dinheiro, mas para amizades de verdade, não há dinheiro nem falsidade, que vença uma realidade.

UM ABRAÇO DESTE VOSSO AMIGO.

Mário Manso